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Cronicas-->Fla x Flu -- 15/04/2000 - 21:18 (Bruno Ribeiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Quando o árbitro desatou a correr feito gazela, peito
estufado e o braço teso na horizontal apontando para a
marca da cal, Aparício cerrou os olhos. A mão injusta
da autoridade maior denunciava o crime, e o dedo
indicador no peito do Valdemar - o melhor beque do
Brasil - feria o orgulho de toda uma nação: a torcida
do Flamengo, oito vezes maior que a população do
Uruguai.

Da arquibancada, Aparício bem que previra a
tragédia, quando Mulatinho, pequeno e rápido como um
ponteiro de segundos, roubou a bola no meio de campo.
Dá-se a perseguição: o gato atrás do rato. "Pega ele,
Valdemar!" O entrechoque dos músculos; o grito de dor
que atravessa todo o Maracanã; eis as pernas
entrelaçadas na grama, como troncos de ébano.
Tentativa de homicídio dentro da grande área; crime
inafiançável, pecado mortal, imperdoável. O pênalti
está marcado.

É o último minuto da partida, final de
campeonato, o grande drama está armado, as atenções
todas voltadas para a baliza rubro-negra. Com os olhos
fechados, Aparício suplica aos santos de prontidão.
Nessas horas, o homem - sobretudo o homem que gosta de
futebol - redescobre a esperança nos detalhes, há mil
motivos para uma conspiração astral, tudo é movido
pela mandinga. Soube que o goleiro do seu time era
filho de santo num terreiro em São Cristóvão. "O homem
tem o corpo fechado; hoje a bola não entra..."

Mesmo mergulhado em sua escuridão, Aparício
sentia a tensão das torcidas silenciadas. Pressente o
momento do encontro entre goleiro e centroavante - o
touro e o toureiro frente a frente. A gigantesca arena
aguarda o golpe de misericórdia. Aparício insiste em
privar seus olhos - e o coração - do terrível
espetáculo. Mas mesmo de olhos fechados, ele chega a
visualizar o beijo na bola, o cuspe grosso do goleiro
contra as luvas, o sorriso cínico do Mulatinho, as
testas porejadas de suor. O apito grita estridente.
Ouve-se o estampido seco do arremate. A torcida
inimiga explode num orgasmo colorido e disforme,
despencando arquibancada abaixo. É gol do Fluminense.

Aparício não se conforma com a sutileza da
cobrança. "Deus não existe". Um chute imodesto, desses
que desmoralizam mais que um tapa na cara. O olhar
permanece fixo na bola, enroscada no fundo da rede e
nítida, quase uma lua incandescente sob os holofotes
da imprensa, ainda vibrando com o golpe, feito um
peixe agonizante.

Súbito, baixa ao Aparício a sensação de que
tudo não passou de uma brincadeira de mau gosto; o
árbitro irá voltar atrás, apanhará a bola no fundo das
traves e o tempo retrocederá até o apito inicial da
partida. Realizar-se-á então um novo embate, e o
Mengão, impiedoso, irá massacrar o escrete tricolor,
ante o olhar atónito da burguesa torcidinha
pó-de-arroz. Porém, o retorno do homem racional não
tarda e a realidade vem bater às portas da percepção,
indesejada como nunca. "No último minuto de jogo...
Como eu odeio este país!"

A multidão vai se dissolvendo aos poucos.
Na volta para o lar, muitos vão ficando pelos bares,
outros congestionam o trànsito e há quem antecipe o carnaval
pelas praias. No entanto, Aparício permanece; escuta o samba
que toma de assalto a cidade e chega a se perguntar se
terá surpresas do tipo no último minuto da vida. "No
último minuto...Nada mais humilhante".

Cada estouro de rojão é um soco no estómago.
Mas Aparício permanece, sentado na arquibancada vazia,
enquanto as luzes do Maracanã se apagam,
transportando-o novamente para a escuridão.

Bruno Ribeiro
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